segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

NATAL NO CAMPUS

Epitácio Macário
professor de Economia Política (UECE)
     

Quando a tropa invadiu o campus, uma nuvem tomou o nascente e cobriu de sombras a cidade universitária.

A noite tinha começado bela. A lua cheia derramava branda luz azulada sobre a copa das árvores. Os ipês vestiam-se de folhagem roxa e amarela, fora de época. As cercas vivas, que ladeiam os jardins da reitoria, pareciam um tecido de chita. Era dezembro, de brisa paulistana.

No pavilhão central, estudantes, professores e gente da comunidade festejavam a posse do território. Alternavam discursos, música, teatro. Clowns tropeçavam nas gargalhadas da assistência. Um físico falava da apropriação da ciência pelas corporações e o aparte foi concedido a um sociólogo, que denunciou os tempos de autoritarismo e guerras. Alunos da escola de artes e militantes sociais revezavam, declamando Drummond, Pessoa, Benedetti...

Não que não se desconfiasse, mas o anúncio caiu como chumbo sobre as cabeças. Dos transmissores da rádio livre, instalada no alto do torreão da entrada, o locutor falou em voz pausada e pesarosa: “Amigos estudantes... Companheiros professores... Lutadores do povo... Com preocupação, anunciamos que um comboio militar acaba de adentrar o campus”.

A fuligem pareceu condensar-se no céu e uma sombra cobriu o campus.

Homens em formação de três colunas avançaram rumo ao pavilhão, acompanhados em terra por cães farejadores e, no alto, por atiradores de elite, num helicóptero. No palácio do governo, cascatas de luzes resplandeciam numa festa preparada para a ocasião. O chefe da guarda recebia e transmitia às autoridades informações precisas sobre a operação “natal no campus”.

A luz foi cortada e a tropa já iniciava a desocupação, quando Maria, estudante de Pedagogia da Terra, entrou em trabalho de parto. Ao seu lado, José, liderança dos círculos bolivarianos e estudante de Agronomia, bradou: “Compañeros, necesito ayuda aquí. Mi hijo va a nacer”. E, exultante, arrematou:  “que él vienga a vivir con dignidad y luchar junto a nosotros por la libertad”. Um professor de medicina rasgou caminho na multidão, dirigindo-se ao casal e gritando em tom imperioso: “Acendam as luzes! Organizem um círculo! Protejam Maria e José!”.

Lanternas e isqueiros foram acesos, formando imensa ciranda de luzes. Por fora, vis a vis com os coturnos, formou-se um tapete de mulheres deitadas ao chão. No centro, acalorada discussão entre o catedrático de medicina, residentes, estudantes de enfermagem e duas parteiras do povo que lá estavam. Os gemidos iam e vinham ao ritmo das contrações.

Um soldado, com treinamento em primeiros socorros, desvencilhou-se do escudo e do coldre e correu para ajudar. Hesitando entre a honra e a obediência, o comandante suspendeu a operação e ordenou a retirada da tropa para os arredores do campus.

Como num mistério, o nevoeiro desfez-se e a lua mostrou-se em toda sua majestade no centro da esfera celestial. Pendurada no firmamento, uma estrela solitária parecia querer beijar a terra. Do alto do torreão, o fato era transmitido para as comunas urbanas e assentamentos dos arredores da cidade.

Não tardou para que a noite fria fosse invadida por caravanas que se dirigiram à cidade universitária. Os assentados da terra trouxeram frutas da época e ervas aromáticas; os operários das fábricas ocupadas, tecidos de algodão. Dos currais da faculdade de veterinária, tangeram, até o local, um casal de bovinos e duas ovelhas.

Sinos já se faziam ouvir alhures quando o relógio da praça central marcou meia noite. O tempo pareceu suspenso, tão profundo o silêncio e a inércia da assembleia; era como que aguardassem a realização da profecia. Foi quando a criança veio à luz, silenciando apenas quando a segunda anunciou-se com estridente choro. “Gêmeos!”, gritou em uníssono a brigada que assistia a mãe.

Enamorado, José abraçou e beijou Maria; depois, com a ajuda do soldado, ergueu as crianças bem no alto e proferiu: “Bienaventurados los hijos del pueblo, porque el futuro les pertence a ellos”.

A madrugada iniciou embalsamada com o cheiro das frutas, dos incensos e ervas raras trazidas de longe pelos lutadores do povo. A assembleia fora restabelecida nas primeiras horas de 25 de Dezembro. E quando os raios de sol atingiram o torreão da entrada, uma estudante de jornalismo transmitiu em ondas curtas: “Com profunda alegria, anunciamos que a polícia deixou a cidade universitária e a assembleia declarou o campus território livre. Informamos também que, a zero hora, Maria deu à luz duas crianças, filhas de José. Por decisão da assembleia, os bebês receberam o nome de Florestan e Maria de Jesus, filhos do povo”.

E toda a cidade acordou com a música O Cio da Terra transmitida pela rádio clandestina. 


Para os companheiros da USP.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

11 DE SETEMBRO: QUE O TEMPO NÃO RELEGUE AO ESQUECIMENTO


David Moreno Montenegro.
(Cientista Social, Mestre em Sociologia. Professor do IFCE).




O terror que sofreram não foi causado por fundamentalistas, tampouco por alguma seita militar-religiosa cuja intolerância é apontada como ideologia. Os ataques foram perpetrados por caças de guerra que rasgavam os céus e despejavam bombas sobre o Palácio de La Moneda, sede do governo democraticamente eleito, além de milhares carabineros que marchavam imponentes pelas ruas e reprimiam com violência qualquer manifestação popular.
 
A exemplo de tantas nações latino-americanas vilipendiadas e atacadas em sua soberania, era chegada a vez do Chile deflagrar seus dias negros de terror em que as mortes, torturas e perseguições passariam a atormentar cotidianamente os homens e mulheres daqueles tempos, instantes que não escaparam às letras do poeta Gabriel García Márquez quando, revelando um pouco mais das dores da alma chilena, disse que “el drama ocurrió en Chile, para mal de los chilenos, pero há de pasar a la historia como algo que nos sucedió sin remédio a todos los hombres de este tiempo y que se quedó en nuestras vidas para siempre” (Gabriel García Márquez, La Aventura de Miguel Littín Clandestino em Chile, 1986). 
 
Aquele governo, radicalmente democrático e de viés socialista, não poderia ser tolerado pela Casa Branca sob o governo Nixon que juntamente com a CIA, sob a batuta de Henry Kissinger, então maestro do Conselho de Segurança Nacional, implementou medidas que fizeram ruir o Chile de Allende. Muitas foram as ações que envolviam desde a retirada maciça de investimentos norte-americanos na economia chilena, muito dependente daquela em meados da década de 1970, até o financiamento de partidos ultraconservadores (Partido Demócrata Cristiano e Partido Nacional), passando ainda por campanhas de difamação do governo junto às forças armadas e cooptação de militares de alta patente pela causa golpista, entre eles Augusto Pinochet, que ao tomar o poder levou a cabo uma das mais sanguinárias ditaduras no continente.

O ataque ao povo chileno inaugurou um tempo de horrores, de medo e incertezas em relação ao futuro. O tão profundo sentimento de liberdade alimentado pelo espírito humano, porém inexplicável, nos dizeres da poetisa, foi ultrajado pelos atos de violência que feriram de morte o sonho de um povo em reinventar padrões civilizatórios em que a solidariedade, o agir coletivo e democrático deveriam formar as bases de novas sociabilidades capazes de apontar para um viver emancipado do homem.

Salvador Allende, negando a submissão ao inimigo indigno, pôs fim, de forma lacônica e, ao mesmo tempo, heróica, à sua existência, mas não sem resistir, não sem lutar até o fim para deixar gravadas em fogo suas últimas palavras dirigidas a toda a nação, e que assim versavam: “Viva el Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores! Estas son mis últimas palabras y tengo la certeza que mi sacrifício no será en vano, tengo la certeza de que, por lo menos, será una lección moral que castigará la felonía, la cobardía y la traición” (Presidente Allende, 11 de setembro de 1973, 09:10 am, Palácio de La Moneda). Aquele dia, 11 de setembro de 1973, jamais será esquecido, mesmo que como farsa, tragicamente, a história se reescreva.