quarta-feira, 6 de abril de 2011

STF: HORROR E CINISMO

David Moreno Montenegro

Certa vez ensinou o jurista George Jellinek (1851 – 1911) que as normas jurídicas não poderiam escapar às “forças normativas da dimensão fática”, alertando que as leis delineadoras das ações não poderiam negligenciar o poder dos fatos sociais. A sensibilidade de captar os sentimentos e anseios contidos nos clamores populares, nas manifestações sociais, nas vísceras vicejantes do fazer cotidiano de uma sociedade parece ser capacidade em falta em nossos ministros do STF, tribunal muito bem caracterizado por importante filósofo uspiano de casa dos horrores. Nos últimos dias, a assustadora casa deu mais uma prova de seu temido repertório de perversidades ao rejeitar projeto de lei endossado por mais de um milhão de cidadãos brasileiros que lá gravou sua assinatura, afora aqueles que mesmo distantes das pilhas de papéis que movem o Estado burocrático brasileiro, deixaram sua marca na história por palavras de ordem.

Tão assustador quanto foi assistir com que indiferença a maior parte dos doutos ministros alertavam para os “perigos” em se considerar a paixão vinda das ruas como elemento determinante na decisão técnico-jurídica que deveriam tomar, afirmando que o papel que desempenhavam era o da defesa dos valores consagrados na carta magna de 1988. O argumento vencedor destacava o clima de insegurança jurídica que poderia ser gerado ao se mudar as regras do jogo com o mesmo em andamento. Pelo que me consta, os pretendentes a cargo parlamentar atingidos pela nova legislação seriam aqueles já condenados em alguma instância judicial, devendo os mesmos ser impedidos de disputar cargos públicos até que a querela jurídica fosse solucionada. Ora, não se trata de ataque à presunção de inocência, mas, antes, uma medida protetora da sociedade daqueles que aspiram ao poder político e são marcados por evidentes desvios éticos, poder tão próximo neste país dos mais temidos arroubos autoritários.

Considerar os valores contidos na constituição de 1988 como imutáveis, congelados no tempo revela mais um impressionante, e por que não dizer cínico, recurso retórico que nega o caráter mutável, histórico e contingente dos valores de cada época, valendo-se de tal engodo discursivo para legitimar verdadeiros atentados à vontade e iniciativa populares, trazendo à tona o caráter nebuloso e insólito das decisões do referido tribunal que, nos últimos anos, além de ter dado provas da simpatia por banqueiros criminosos, acaba de incluir mais uma categoria no panteão às avessas de seu show de bizarrices: políticos corruptos.

Do que se trata, portanto, é nos perguntar sobre as bases efetivamente democráticas de tais decisões e a capacidade destas de refletir a realidade escancarada das mudanças há muito gestadas e reivindicadas por um país ainda neófito nas práticas democráticas, uma vez que são tomadas por sujeitos que se julgam acima da roda viva da história, como que se pronunciassem dum limbo marcado pela vacuidade, impossível de ser influenciado pelas verdades do mundo profano. Eis mais uma cena do espetáculo maldito do circo dos horrores.



David Moreno é Cientista Social (UECE); Mestre em Sociologia (UFC); Professor de Sociologia do IFCE. Artigo publicado no Jornal O Povo (clique aqui para ver)

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