quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Cotas, para quê servem?


Paulo Massey
Sociólogo, professor do IFCE


Há três condições fundamentais para a aplicação dos sistemas de cotas das quais se pode esperar efeitos positivos e sem as quais toda resistência que ora se opõe àqueles sistemas encontrará lamentável justificativa.

Primeiro, que as cotas sejam sociais, levando em consideração não apenas a etnia, a cor ou raça declarada, mas sim a situação de desemprego, de recém-egresso do sistema prisional, de escolaridade cursada majoritariamente ou concluída no ensino público e demais condições ou circunstâncias que colocam as pessoas num lugar de considerável vulnerabilidade sócio-econômica, tornando o perfil de renda familiar ou “per capita” fator de “corte” frente aos outros critérios.

Isso por que, dentre outras distorções, é preciso evitar, por exemplo, a migração de estudantes oriundos de famílias de alta renda para as escolas públicas, tendo em vista disputar as vagas reservadas pelas cotas. Uma vez ocupada por alunos de maior nível, isso não significa que a escola, ela mesma, tenha melhorado seu ensino. É preciso, pois, que a escola pública eleve seu nível por que melhorou o ensino aos seus alunos e eleve o nível de seus alunos porque melhorou seu ensino.

Segundo, que o sistema de cotas não esteja refém de programas de governo, sendo necessário institucionalizá-lo, inserindo-o no desenho de uma estrutura maior: algo como um plano nacional de educação que, entre outras medidas de longo prazo, vincule o tempo de vigência das cotas à obtenção de determinados índices de qualificação na educação básica, obedecendo a metas, prazos e à avaliação crítica dos resultados.

Terceiro – e isso é decisivo -, que os alunos cotistas assumam a dianteira de um movimento político que há décadas luta por uma “universidade pública, gratuita e de qualidade”; ou seja, que em nenhum momento esses estudantes tenham a ilusão de que a universidade, tal como ela existe e é concebida, lhes garantirá algo mais do que um diploma; que eles percebam e levem às últimas conseqüências as contradições, as desigualdades e as injustiças sociais reproduzidas, com maior ou menor gravidade, de modo particular, no interior da universidade.

Para não dizer muito, isso significa que, ao ingressarem no ensino superior, esses estudantes terão de lutar diariamente contra uma densa cadeia de injunções e iniqüidades que há muito domina a administração e o meio acadêmico - um complexo que responde pelas hierarquias de poder e comando, pelos privilégios e suas clientelas, pela ausência de transparência e participação direta nas instâncias superiores de decisão, pela prioridade do ensino em detrimento da pesquisa e da extensão, pela prevalência do interesse estritamente econômico na decisão de quais pesquisas serão financiadas, enfim, pelas disparidades materiais que dividem as áreas e os departamentos científicos e, por conseqüência, segregam astuciosamente estudantes e professores, causando inestimável prejuízo à vida universitária, sobretudo à produção, à divulgação e à integração dos conhecimentos, das realizações e das oportunidades.

Ou seja, esses estudantes terão de afirmar, a todo instante, como quem marca o passo das mudanças lentas, mas necessárias, algo que diz o seguinte: “queremos a universidade, mas essa não é a universidade que queremos”. Dirão isso com a certeza de que o impossível não é exatamente aquilo que não tem realidade, mas sim apenas um modo de fazer com que o pensamento supere a si mesmo, em direção a sua realização, à realização do que antes era impensável.

Pois bem, quando os oportunistas, os ressentidos e os pietistas que ocasionalmente clamam pelas cotas se juntarem aos liberais e aos conservadores, condenando em uníssono e furiosamente seu caráter “socialista”, com a acusação de que “esse absurdo” tanto desfigura o papel estratégico da universidade quanto a desvia de sua função tradicional, então saberemos, de fato, a quê e a quem devem servir as cotas.


“Que a universidade se pinte de negro, de mulato, de operário, de camponês” (Che Guevara)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Bons tempos, Boitempo...

O Blog da Boitempo inaugura, com esta colaboração do sociólogo Paulo Massey, o Espaço do leitor, dedicado à publicação de textos inéditos escritos por nossos leitores. 

Clique aqui para ler o artigo.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

NATAL NO CAMPUS

Epitácio Macário
professor de Economia Política (UECE)
     

Quando a tropa invadiu o campus, uma nuvem tomou o nascente e cobriu de sombras a cidade universitária.

A noite tinha começado bela. A lua cheia derramava branda luz azulada sobre a copa das árvores. Os ipês vestiam-se de folhagem roxa e amarela, fora de época. As cercas vivas, que ladeiam os jardins da reitoria, pareciam um tecido de chita. Era dezembro, de brisa paulistana.

No pavilhão central, estudantes, professores e gente da comunidade festejavam a posse do território. Alternavam discursos, música, teatro. Clowns tropeçavam nas gargalhadas da assistência. Um físico falava da apropriação da ciência pelas corporações e o aparte foi concedido a um sociólogo, que denunciou os tempos de autoritarismo e guerras. Alunos da escola de artes e militantes sociais revezavam, declamando Drummond, Pessoa, Benedetti...

Não que não se desconfiasse, mas o anúncio caiu como chumbo sobre as cabeças. Dos transmissores da rádio livre, instalada no alto do torreão da entrada, o locutor falou em voz pausada e pesarosa: “Amigos estudantes... Companheiros professores... Lutadores do povo... Com preocupação, anunciamos que um comboio militar acaba de adentrar o campus”.

A fuligem pareceu condensar-se no céu e uma sombra cobriu o campus.

Homens em formação de três colunas avançaram rumo ao pavilhão, acompanhados em terra por cães farejadores e, no alto, por atiradores de elite, num helicóptero. No palácio do governo, cascatas de luzes resplandeciam numa festa preparada para a ocasião. O chefe da guarda recebia e transmitia às autoridades informações precisas sobre a operação “natal no campus”.

A luz foi cortada e a tropa já iniciava a desocupação, quando Maria, estudante de Pedagogia da Terra, entrou em trabalho de parto. Ao seu lado, José, liderança dos círculos bolivarianos e estudante de Agronomia, bradou: “Compañeros, necesito ayuda aquí. Mi hijo va a nacer”. E, exultante, arrematou:  “que él vienga a vivir con dignidad y luchar junto a nosotros por la libertad”. Um professor de medicina rasgou caminho na multidão, dirigindo-se ao casal e gritando em tom imperioso: “Acendam as luzes! Organizem um círculo! Protejam Maria e José!”.

Lanternas e isqueiros foram acesos, formando imensa ciranda de luzes. Por fora, vis a vis com os coturnos, formou-se um tapete de mulheres deitadas ao chão. No centro, acalorada discussão entre o catedrático de medicina, residentes, estudantes de enfermagem e duas parteiras do povo que lá estavam. Os gemidos iam e vinham ao ritmo das contrações.

Um soldado, com treinamento em primeiros socorros, desvencilhou-se do escudo e do coldre e correu para ajudar. Hesitando entre a honra e a obediência, o comandante suspendeu a operação e ordenou a retirada da tropa para os arredores do campus.

Como num mistério, o nevoeiro desfez-se e a lua mostrou-se em toda sua majestade no centro da esfera celestial. Pendurada no firmamento, uma estrela solitária parecia querer beijar a terra. Do alto do torreão, o fato era transmitido para as comunas urbanas e assentamentos dos arredores da cidade.

Não tardou para que a noite fria fosse invadida por caravanas que se dirigiram à cidade universitária. Os assentados da terra trouxeram frutas da época e ervas aromáticas; os operários das fábricas ocupadas, tecidos de algodão. Dos currais da faculdade de veterinária, tangeram, até o local, um casal de bovinos e duas ovelhas.

Sinos já se faziam ouvir alhures quando o relógio da praça central marcou meia noite. O tempo pareceu suspenso, tão profundo o silêncio e a inércia da assembleia; era como que aguardassem a realização da profecia. Foi quando a criança veio à luz, silenciando apenas quando a segunda anunciou-se com estridente choro. “Gêmeos!”, gritou em uníssono a brigada que assistia a mãe.

Enamorado, José abraçou e beijou Maria; depois, com a ajuda do soldado, ergueu as crianças bem no alto e proferiu: “Bienaventurados los hijos del pueblo, porque el futuro les pertence a ellos”.

A madrugada iniciou embalsamada com o cheiro das frutas, dos incensos e ervas raras trazidas de longe pelos lutadores do povo. A assembleia fora restabelecida nas primeiras horas de 25 de Dezembro. E quando os raios de sol atingiram o torreão da entrada, uma estudante de jornalismo transmitiu em ondas curtas: “Com profunda alegria, anunciamos que a polícia deixou a cidade universitária e a assembleia declarou o campus território livre. Informamos também que, a zero hora, Maria deu à luz duas crianças, filhas de José. Por decisão da assembleia, os bebês receberam o nome de Florestan e Maria de Jesus, filhos do povo”.

E toda a cidade acordou com a música O Cio da Terra transmitida pela rádio clandestina. 


Para os companheiros da USP.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

11 DE SETEMBRO: QUE O TEMPO NÃO RELEGUE AO ESQUECIMENTO


David Moreno Montenegro.
(Cientista Social, Mestre em Sociologia. Professor do IFCE).




O terror que sofreram não foi causado por fundamentalistas, tampouco por alguma seita militar-religiosa cuja intolerância é apontada como ideologia. Os ataques foram perpetrados por caças de guerra que rasgavam os céus e despejavam bombas sobre o Palácio de La Moneda, sede do governo democraticamente eleito, além de milhares carabineros que marchavam imponentes pelas ruas e reprimiam com violência qualquer manifestação popular.
 
A exemplo de tantas nações latino-americanas vilipendiadas e atacadas em sua soberania, era chegada a vez do Chile deflagrar seus dias negros de terror em que as mortes, torturas e perseguições passariam a atormentar cotidianamente os homens e mulheres daqueles tempos, instantes que não escaparam às letras do poeta Gabriel García Márquez quando, revelando um pouco mais das dores da alma chilena, disse que “el drama ocurrió en Chile, para mal de los chilenos, pero há de pasar a la historia como algo que nos sucedió sin remédio a todos los hombres de este tiempo y que se quedó en nuestras vidas para siempre” (Gabriel García Márquez, La Aventura de Miguel Littín Clandestino em Chile, 1986). 
 
Aquele governo, radicalmente democrático e de viés socialista, não poderia ser tolerado pela Casa Branca sob o governo Nixon que juntamente com a CIA, sob a batuta de Henry Kissinger, então maestro do Conselho de Segurança Nacional, implementou medidas que fizeram ruir o Chile de Allende. Muitas foram as ações que envolviam desde a retirada maciça de investimentos norte-americanos na economia chilena, muito dependente daquela em meados da década de 1970, até o financiamento de partidos ultraconservadores (Partido Demócrata Cristiano e Partido Nacional), passando ainda por campanhas de difamação do governo junto às forças armadas e cooptação de militares de alta patente pela causa golpista, entre eles Augusto Pinochet, que ao tomar o poder levou a cabo uma das mais sanguinárias ditaduras no continente.

O ataque ao povo chileno inaugurou um tempo de horrores, de medo e incertezas em relação ao futuro. O tão profundo sentimento de liberdade alimentado pelo espírito humano, porém inexplicável, nos dizeres da poetisa, foi ultrajado pelos atos de violência que feriram de morte o sonho de um povo em reinventar padrões civilizatórios em que a solidariedade, o agir coletivo e democrático deveriam formar as bases de novas sociabilidades capazes de apontar para um viver emancipado do homem.

Salvador Allende, negando a submissão ao inimigo indigno, pôs fim, de forma lacônica e, ao mesmo tempo, heróica, à sua existência, mas não sem resistir, não sem lutar até o fim para deixar gravadas em fogo suas últimas palavras dirigidas a toda a nação, e que assim versavam: “Viva el Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores! Estas son mis últimas palabras y tengo la certeza que mi sacrifício no será en vano, tengo la certeza de que, por lo menos, será una lección moral que castigará la felonía, la cobardía y la traición” (Presidente Allende, 11 de setembro de 1973, 09:10 am, Palácio de La Moneda). Aquele dia, 11 de setembro de 1973, jamais será esquecido, mesmo que como farsa, tragicamente, a história se reescreva.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Na política não há lugar para o vazio

Paulo Massey

Desde o início deste ano, quando os protestos que derrubaram os regimes autoritários no “mundo árabe” ganharam as manchetes dos noticiários, temos visto uma sucessão de mobilizações em massa que, inicialmente, ocuparam as ruas e centros urbanos das principais cidades e capitais dos Estados Unidos e Europa, espraiando-se rápida e surpreendentemente pelos demais continentes por força, em boa medida, das chamadas “redes sociais” – um dispositivo que, junto com essas mobilizações e mesmo se confundido com elas, inaugura uma nova era quanto à capacidade global de organização das resistências políticas.

Depois da chamada “Primavera Árabe” que levantou multidões contra a tirania dos governos da Tunísia, Líbia, Egito, Argélia, Jordânia, Marrocos, Iêmen, Bahrein e Síria, vieram os protestos em defesa da educação pública no Chile, os “indignados” na Espanha, os incêndios e saques praticados no norte de Londres, o inconformismo da geração “à rasca” em Portugal, as manifestações contra a crise econômica na Grécia, a oposição ao governo Berlusconi na Itália, até que os protestos ganharam uma razoável perenidade por meio da ocupação estratégica de espaços públicos, tal como se viu especialmente no Occupy Wall Street - uma experiência replicada em diversas outras cidades da qual a última notícia que se tem é sobre o movimento “Ocupa Tóquio”.

No Brasil, tal como acontece noutros lugares, esses acampamentos urbanos têm resistido à forte repressão policial e à indisposição da mídia que, quando não ataca diretamente, silencia e boicota a divulgação do esforço daqueles que, há meses, mantêm de pé as barracas do Ocupa Sampa, do Ocupa Rio e do Ocupa Salvador. Por fim, há pouco mais de um mês, o dia 15 de outubro foi consagrado como o dia da “revolução mundial”, contando com a realização de protestos, ocupações, marchas, greves, fóruns, aulas públicas e demais ações contestatórias em quase 900 cidades espalhadas pelo mundo e virtualmente conectadas.

Sem querer estender o caráter informativo ou quase jornalístico desta apresentação, procurando dar conta das particularidades que melhor caracterizam cada um desses eventos – já que se sabe claramente da radical diferença entre os contextos histórico-nacionais de uma Líbia e de uma Holanda – interessa abstrair essas diferenças em nome das semelhanças e mesmo da situação típica que permite falar, senão em termos de unidade, pelo menos em termos gerais.

Clique aqui para ler o artigo completo no site da Editora Boitempo ou aqui para acessá-lo em pdf.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Memórias do terror

 
 
CÓRREGO das ANTAS
 
 
Carlos Bonfim
Professor da FACEDI-UECE

 
14 de março de 1971. Miguel, ferido, encontrava-se só, num quarto secreto, amiúde: uma estante, mesinha, colchão ao piso, uma máquina de escrever portátil, paredes vazias, vários panfletos ao lado do sanitário. O ferimento sangrava vazio com transe, mas sem líquido. Então à luz de vela cortou a noite lendo velhos jornais. 
 
No outro dia. Bem cedo da manhã. Longe dali. No quartel do exército. Em reunião do S/2, o Capitão Correia, sujeito magro, amargo, de bigode vultoso, de fala cheia e curta, foi incisivo: “Eram cinco inimigos da pátria; desinfetamos quatro; resta um sobrevivente; está entocado por aí; a ordem é achá-lo... morto”. 
 
A noite desse dia abateu-se densa. A chuva desabou forte sobre os lisos paralelepípedos das sinuosas e apertadas ruas da cidade – amedrontada. No seu versar sobre o chão, águas levavam microsseres pelos esgotos até ao Córrego das Antas, aonde, no meio da noite, foram encontrados, pela população local, em suas águas escuras, quatro macrosseres, boiando... sem vida.
 
Desde então, sombrio pareceu transcorrer o tempo. Nisso caiu o Regime Militar. Desmoronou o Muro de Berlim. No entanto, Miguel sobreviveu. Não se tornou professor, jornalista, empresário e nem político. Só um feirante de verduras, chamadas por ele de “cheiro verde da terra”. Mas em todos esses anos, na mesma data, 14 de março, Miguel dirigia-se ao Córrego das Antas. Sobre suas águas, ainda mais escuras e turvas, jogava flores vermelhas – e murmurava uma prece íntima, dolorosa: “Aos meus queridos companheiros, à minha ardente utopia”.
 
 
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As memórias de muitos desses revolucionários - homens comuns que se rebelaram contra as formas mais sádicas e cruéis da autocracia militar - não podem desaparecer no rastro da história que se quer apagar. As novas gerações precisam conhecer a saga desses verdadeiros heróis, obtusamente ignorados por jovens que, infelizmente, celebram ensandecidos os ídolos do esporte, da música e da moda astutamente forjados pela mídia burguesa. A propósito, vejam a publicação da autobiografia de Gregório Bezerra pela Editora Boitempo e o comentário de Edson Teles sobre a Comissão Nacional da Verdade.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Dilemas

Veja a crônica de Epitácio Macário sobre as aporias de um materialista agnóstico ante as mais insuspeitas mistificações mercantis da vida contemprânea.

A pós-modernidade em debate

UM PENSADOR OBSCURANTISTA

José Eudes Baima Bezerra


Recentemente, em mesa-redonda promovida pelo PET de Geografia (UECE, Itaperi) na comemoração de seus 15 anos, anunciei sem desenvolver a seguinte idéia: o chamado pós-modernismo é a recepção, no campo das idéias, dos fenômenos de regressão social que observamos na virada dos sécula XX para o século XXI, isto é, uma aceitação teórica do retorno ao pré-modernismo (daí o apego das linhas de pensamento enquadradas no pós-modernismo a categorias como tribalismo, comunidade, localismo, subsidiariedade, etc.). Tratar-se-ia, assim, nesse insight não desenvolvido que tive durante o evento, de uma justificação teórico-ideológica dos processos de destruição das conquistas civilizatórias impostas ao sistema do capital pela luta da classe operária, um fenômeno, aliás, peculiar ao período moderno, isto é, ao período histórico caracterizado pela propriedade privada dos grandes meios de produção.

Para ler o artigo na íntegra clique aqui.

 
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[Resposta]

  
Claudiana Nogueira de Alencar

Gostaria de me livrar da dispneia que me toma agora, fruto de uma bronquite, que me impediu inclusive de participar de nossa assembleia, para responder ao artigo do prof. Eudes mais demoradamente. Não porque eu seja especialista no assunto, ou defensora das ideias de Maffesoli ou mesmo simpatizante dos teóricos ditos pós-modernos ou de suas (im)posturas intelectuais, estando mais propensa a crer , como alguns dos seus críticos, que tal movimento representa  a “cínica e tardia vingança da cultura burguesa contra seus antagonistas revolucionários”.  É porque, há tempos, tenho tido admiração pelas colocações escritas ou orais do prof. Eudes [José Eudes Baima Bezerra], sempre apropriadas e argutas, que achei muito ligeira a adesão da nota ao pensamento monossêmico que generaliza tendências neoconservadoras de natureza política, cultural e epistemológica na forma de um pensamento dito “pós-moderno”, ao mesmo tempo em que aposta ingenuamente nos ideais iluministas, icônicos da modernidade, como responsáveis pelas progressistas conquistas da classe trabalhadora, sem, ao menos, mostrar desconfiança no que tange ao mesmo projeto da modernidade, que como uma terrível paródia da utopia socialista, tem construído reconfigurações do sistema capitalista tradicional, em suas formas mais sutis de exploração humana. Não podemos pensar “o moderno” e/ou o pós-moderno assim, como um conceito (ou pseudoconceito) unidimensional.



Para ler o artigo na íntegra clique aqui.



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O que é pós-modernidade? Um diálogo com Agnes Heller e Ferenc Fehér

Francisco Antonio da Silva

Um dos temas principais que ronda a arena das Ciências Sociais e Humanas é a questão da pós-modernidade. Teóricos da Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Filosofia e História limitam seus esforços intelectuais a redefinirem o campo de atuação de suas respectivas áreas. Argumentam que as sociedades ocidentais não podem mais ser compreendidas a partir dos “velhos” referenciais teórico-metodológicos herdados do século XX. Argumentam também que a modernidade já não mais existe (daí insistirem na pós-modernidade enquanto discurso e ao mesmo tempo processo).

Para ler o artigo na íntegra clique aqui.


Fonte:

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Imperfeição denegada: o narcisismo petista e suas implicações




Paulo Massey
Sociólogo, professor do IFCE

Noutra ocasião, levantei a hipótese de que aquilo que podemos chamar de “inconsciente político” do PT, para usar uma locução consagrada por Fredric Jameson, se expressa por meio de três linhas de ação que têm caracterizado o modo petista de governar: o espetáculo, a conciliação e o ressentimento. 

O espetáculo se traduz pela propaganda oficial, pela paranóia das demonstrações quantitativas do crescimento e dos investimentos realizados pelo governo, sobretudo, como forma de responder às pressões e expectativas da mídia, instrumentada pela oposição e sempre à espreita, conspirando um levante golpista; a conciliação é, por sua vez, no mínimo, forçada, já que tem em vista reatar interesses francamente antagônicos, deslegitimar as reivindicações dos setores em greve e esconder a brutal disparidade salarial e a diferença quanto à valorização existente entre as carreiras do serviço público; o ressentimento, por fim, é a tentativa recorrente de atribuir ao Outro uma culpa que é sua, como forma de se defender do real que sobrevém quando são desfeitas as ilusões simbólicas; ou seja, o governo Dilma e seus representantes agem de modo a evitar o peso insuportável de se perceber uma unidade contraditória (e isso não foi exatamente um problema para Lula, que era menos um neurótico do que um perverso, viabilizando o exercício de uma “hegemonia às avessas”) enlaçada num processo conflituoso, no interior do qual as categorias profissionais recuperam progressivamente sua autonomia política, rompendo as amarras do pacto de silêncio selado entre o Partido, a Central Sindical e o Governo que ainda se crêem “dos trabalhadores” – uma fantasia que se contrapõe à força esvaziadora do real, à perda de sentido, à impossibilidade de manter a coerência entre desejo, norma e ação, portanto, entre o que se quer, o que se diz e o que se faz. 

Essas linhas de ação, contudo, traduzem de modo particular não apenas o inconsciente, aquela verdade que se esconde e que se tenta obsessivamente recalcar: o fato de que, para estupor dos puristas, o PT, desde as origens, pretendia chegar ao que é hoje, embora isso fosse intimamente velado ou sublimado num passado idealizado e só tenha se definido como desejo recôndito quando da conformação exata do Outro que lhe impõe expectativas e com o qual procura, de todas as formas, evitar a identificação – o PSDB. Essas linhas de ação, pois, revelam não apenas o inconsciente, mas também a consciência, as convicções de um “eu” que se quer sabedor de suas vontades, de seu poder e de seu lugar no mundo: um eu narcisista. Tome-se qualquer discurso, de qualquer representante do governo (seja ministro, secretário, parlamentar, reitor, assessor...) e se verá a defesa incondicional do “Império” que se está construindo. A conotação monárquica não é sem razão de ser. A democracia se tornou uma figura retórica, quando não um estorvo. O direito ao contraditório ou a simples contraposição é vista como uma inconveniência – pior, uma afronta, um desrespeito, tal como tive a oportunidade de assistir bestificado na última reunião com o Reitor do IFCE, como membro do Comando de Greve. 

O narcisismo petista é uma linha geral de orientação às ações dos representantes do governo e mesmo de seus aliados. Só quando os grevistas de hoje ensaiam grandes manifestações e relembram as cenas do passado que se quer esquecer, as reuniões são, enfim, concebidas – porém, conduzidas com o pressuposto da impertinência, o que só pode ser explicado pela presunção da verdade, pelo fato de que, sem limites à vaidade, o governo crer que tudo é como deve ser, agindo conforme uma vontade geral que, não raro, ganha a conotação de ordem natural das coisas. Daí a acusação freqüente de que os grevistas são contrários ao “projeto nacional do governo” e, em particular, de que os professores se opõem à “expansão da rede federal de ensino profissional e tecnológico”.

O que nos preocupa, no entanto, não é apenas o fato de que somos acusados, a pretexto, de aliança com os setores mais conservadores da mídia e da política, como se não tivéssemos autonomia para apresentar nossas reivindicações e exigir seu cumprimento ou, ainda, o fato de que isso demonstre sutilmente que o governo opera com uma máxima perigosamente excecionária: “quem não está comigo, está contra mim”. O que nos preocupa, mesmo como hipótese, é justamente a conseqüência inarredável que acomete o narcisismo: não podendo agir contra si mesmo - reconhecendo seus limites, contradições e falhas -, resta ao eu narcísico realizar essa pulsão destrutiva, agressiva e violenta sobre os outros, sobre aqueles que podem apontar-lhe a contradição essencial de que padece porque são a própria contradição, e, deste modo, afrontam-no como se fossem um espelho a refletir, para além de toda a beleza aparente, a imperfeição denegada.

Veja o vídeo-resposta: O  inconsciente político do PT                       

sábado, 1 de outubro de 2011

EM DEFESA DA DEMOCRACIA E DA EDUCAÇÃO PÚBLICA
(veja em pdf)

A violência perpetrada pela polícia contra professores e estudantes acampados na Assembléia Legislativa do Estado do Ceará (ALECE) na quinta-feira, 29 de Setembro, expressa o estado de sítio em que vivemos. O governador Cid Gomes e seus(!) deputados têm adotado, continuadamente, uma postura truculenta e antidemocrática no tratamento das críticas, principalmente quando se trata dos servidores públicos, do movimento sindical e social do nosso estado. 

Esta postura levou o governador a mandar(!) o poder legislativo aprovar tediosa lei que estabelece um raio de 40 quarteirões em volta do Palácio da Abolição como área de segurança que pode ser interditada sempre que o governo quiser, legalizando seu medo e desprezo para com as lutas do povo cearense. A conjugação da força bruta com artificiosas manobras legais e midiáticas para conter o conflito convive, harmoniosamente, com a corrupção e os esquemas de enriquecimento ilícito amplamente denunciados no caso dos banheiros e dos empréstimos consignados dos servidores, ambos envolvendo figuras centrais do governo.
A arrogância governamental e sua predileção pelo desrespeito às leis do País são as verdadeiras culpadas pela greve dos professores da rede estadual e pelos transtornos decorrentes. Mesmo tendo sido derrotado na ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) contra a lei que institui o Piso Nacional Docente, o governo insiste em não cumpri-la integralmente e propõe um ajuste que praticamente destrói a carreira dos mestres, com prejuízos inestimáveis à qualidade da educação pública.

Estes fatos põem em risco o futuro da educação pública no Ceará e a própria democracia. Pois se o governo quer impor uma estrutura de cargos e carreira sem dialogar com os professores, que são os sujeitos imediatamente implicados; se trata o amplo movimento de estudantes e professores como caso de polícia; se a imensa maioria dos deputados resolve atender, em regime de urgência, ao mando do governador, em detrimento do clamor de milhares de trabalhadores e estudantes... Estes são sinais claros de um regime de exceção que ameaça os direitos fundamentais de cidadania, democracia e liberdade.

Por isto, a diretoria da Sinduece repudia veementemente a conduta que o governo e a Assembléia Legislativa têm adotado para com a greve dos professores e coloca-se ao lado dos mestres e alunos que sustentam o movimento bravamente.

Ao mesmo tempo, convoca os professores da UECE a participarem do ato/passeata do movimento grevista que ocorrerá segunda-feira, dia 03 de Outubro, saindo da Assembléia Legislativa às 14 horas até o Palácio da Abolição. 

SOMOS TODOS PROFESSORES E ESTUDANTES! 
PELA EDUCAÇÃO PÚBLICA DE QUALIDADE! 
EM DEFESA DA DEMOCRACIA!


Diretoria da Sinduece
“Por trabalho digno, autonomia e democracia na universidade”

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O inconsciente político do PT



Em resposta aos ataques desferidos pelo senhor Eliezer Pacheco (Setec-MEC/MPT) contra os servidores em greve (vide o artigo A crise, o fascismo e as corporações), o sociólogo Paulo Massey, professor do IFCE, expôs, num pequeno vídeo, algumas considerações sobre a forma como o governo federal, por meio de seus representantes, tem tratado os manifestantes, e o quanto isso constitui um sintoma a partir do qual é possível revelar certa verdade que se esconde. A argumentação está centrada na idéia de que o espetáculo (dos números, da propaganda oficial, da projeção midiática da imagem do governo), a conciliação (dos contrários, dos conflitos, ignorando as disparidades que perpassam a expansão dos IF’s) e o ressentimento (como atribuição da culpa ao Outro) configuram as linhas gerais de ação do Governo Dilma por meio das quais se expressa aquilo que seria o seu “inconsciente político”. Confiram!

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Professor Qualis A

Veja a crônica do professor Epitácio Macário, "Professor qualis A", originalmente publicada no blog Pedras que estalam Itapipoca.

Veja mais em O Avesso do Verso.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Vidas que se fazem das sobras...

O professor de sociologia, David Moreno Montenegro, esteve em Curitiba, para apresentar trabalho na IX Reunião de Antropologia do Mercosul. A reunião, intitulada "Culturas, Encontros e Desigualdades", aconteceu no campus da Universidade Federal do Paraná. David apresentou "Vidas que se fazem das sobras: [Des]caminhos que se cruzam no rastro do lixo", dentro da sessão 2 do Grupo de Trabalho 15, que abordava a Antropologia do trabalho e memória dos trabalhadores. A reunião foi prestigiada pelas conferências de Verena Stolcke (Universidad Autónoma de Barcelona), Esther Jean Langdon (UFSC) e Raul Prada (Universidad Mayor de San Andrés - Bolívia).

terça-feira, 19 de julho de 2011

Diário de Classe

O documentário Diário de Classe trata da história das heróicas greves realizadas pelos estudantes e professores da Universidade Estadual do Ceará - UECE entre 2005 e 2008. Os momentos cruciais do movimento estão expressos no vídeo, com um texto poético e uma evolução gradual dos conflitos, até chegar à vitória. O vídeo é uma contribuição à história da luta em defesa da universidade pública, gratuita, democrática e de qualidade em nosso País.

Assista ao vídeo:

segunda-feira, 13 de junho de 2011

"É preciso estar atento e forte..."

O Prof. Dr. Epitácio Macário, presidente da SINDUECE (Sindicato dos Docentes da UECE), participou de debate sobre a carência de professores nas universidades estaduais do Ceará, realizado no auditório da FAFIDAM, no dia 08 de junho de 2011. Em sua intervenção, Macário expôs a tese de que as universidades estaduais cearenses (UECE, UVA e URCA), apesar de terem sido concebidas pelas elites político-econômicas do estado como meio fortalecer as relações oligárquicas sob os governos dos coronéis e, em seguida, terem sido remodeladas pelos jovens empresários que encabeçavam o “governo das mudanças”, essas universidades se encontram, desde meados dos anos 90, em franco processo de “sucateamento”, beirando, por vezes, o completo abandono. Prova disso, diz o professor e sindicalista, é o “vácuo” existente entre as lideranças políticas e empresariais do estado quanto ao destino dessas instituições, o que revela não apenas a incapacidade de planejamento que é própria dessas lideranças, mas também seu intrigante e injustificável desinteresse para com a formação em nível superior. A recente expansão da rede federal de ensino superior, técnico e tecnológico, além da oferta de vagas nas faculdades privadas – pensam governantes e empresários - tornaria desnecessária e onerosa uma política de desenvolvimento das universidades públicas estaduais.
 

No entanto, a grande contradição gestada desde o “parto” dessas universidades, segundo o presidente da SINDUECE, vem à tona quando se tem em vista os impactos sócio-culturais e a função política que estas instituições cumpriram e continuam cumprindo, não apenas na capital, mas fundamentalmente no interior do estado, onde foram instalados diversos campi que, malgrado o discurso da interiorização e as condições precárias em que funcionam, surpreendem pela capacidade de formação qualificada de professores. Não por outro motivo, os principais interessados em soerguer do abandono essas instituições ou, quando necessário, enfrentar os interesses patrimonialistas encastelados são justamente aqueles que vêem na formação superior não apenas um meio de garantir sua subsistência ou a qualificação técnica exigida pelo mercado, mas uma condição para o livre desenvolvimento de suas capacidades e para a fruição da cultura em geral, proporcionada pela integração entre sociedade e academia, demarcando com isso as linhas fundamentais do projeto de universidade que estão dispostos a construir. Por isso mesmo, interessa à SINDUECE se juntar a esses atores, desbordando, inclusive, os limites conjunturais da luta sindical, assentados na melhoria das condições de trabalho e nos planos de carreira dos docentes, e intervir concretamente na discussão em torno de um projeto de universidade “pública, gratuita, democrática e de qualidade”.


Assista ao vídeo:(Parte I), (Parte II), (Parte III), (Parte IV) e (Parte V)

terça-feira, 24 de maio de 2011

O retorno da dialética...

“O corte”: apontamentos para uma análise imanente


Paulo Massey
IFCE-Baturité
paulomassey@ifce.edu.br


Antes do filme, o aviso



A análise do cinema, tal como tem sido feita por aqueles que adotam o filme como recurso em sala de aula, é didática e esclarecedora, na medida em que o drama e os vários elementos que compõem a imagem servem como “pretexto” para a discussão baseada na análise sociológica, ilustrando seus temas clássicos. Essa forma de proceder tem seu valor e sua função. No entanto, é um modo de lidar com a obra de arte que se distingue daquilo que poderíamos chamar de “análise imanente”, condição primeira para uma crítica que se pretenda dialética. Numa análise imanente, as várias questões e discussões que podem ser desenvolvidas a partir da obra de arte refletem, em última instância, o conflito que perpassa todo reflexo estético da realidade – a relação forma/conteúdo. E justamente nessa relação está não apenas o fundamento para a análise acerca das formas narrativas e da natureza do reflexo estético-ideológico figurado no discurso cinematográfico, como quer a “crítica” de cinema, mas também a condição para ponderação quanto ao valor propriamente estético da obra. Isso distingue a crítica feita pela análise imanente (interior e dialética) daquela feita pela análise sociológica (exterior e normativa). Veja que o critério da análise e os elementos para o juízo correspondem à essência da própria obra de arte, já que ela é a necessidade de dizer algo (ética) por meio de uma forma (estética) adequada a uma linguagem (do cinema, teatro, literatura, arquitetura, pintura etc.).

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Viagem às origens...

Émile Durkheim:

a sociologia como fim, o positivismo como meio

Prof. Paulo Massey

IFCE-Baturité

A novidade específica da Sociologia, em sua constituição como ciência moderna, por certo, não consiste em seu objeto, e sim precisamente em seu método, já que a sociedade e a particularidade dos fatos sociais que analisa sempre estiveram no centro das preocupações humanas – pense-se, por exemplo, na República, de Platão ou na Ética, de Aristóteles, obras que, há mais de 2.400 anos, já ponderavam sobre a forma ideal de organização política, a amizade como modo de relação social, a felicidade como finalidade plenamente humana e outros tantos dilemas para os quais era necessário apresentar alguma solução conceitual que superasse os limites da compreensão mitológica. Igualmente certo, porém, é que a reflexão sobre a vida social dos homens ocupou tradicionalmente, desde priscas eras, os escalões mais altos da abstração filosófica, da distância friamente analítica presa ao “mundo das idéias” e à eterna busca dos fundamentos últimos do ser, do pensar e do agir. Por isso mesmo, a Sociologia começa a se constituir como ciência apenas na segunda metade do XIX, quando a conjuntura histórica e os conflitos em torno de contradições materiais candentes impõem ao seu método que essa reflexão se volte à investigação das relações concretas, empiricamente recolhidas com instrumentos de coleta apropriados, em fontes variadas, para que, por meio da comparação – uma espécie de experimentação possível para as “ciências da cultura” -, se chegasse a afirmações mais gerais sobre os fenômenos investigados, na intenção de se aproximar dos avanços auferidos à época pelas ciências naturais, tal como o desejava August Comte. Segundo ele, os instrumentos dessa nova Ciência (antes nomeada Física Social) seriam, par excellence, a observação pura, a experimentação e a comparação, seguidos da denúncia persistente quanto à impertinência do intelecto, dos juízos e dos ideais acerca do “que é o homem”, dado que essas “paixões” apenas desviariam a ciência da sociedade de sua finalidade original: a descoberta das leis naturais que movem os fenômenos sociais.

Coube a Durkheim dar substância empírica (com o estudo sobre o suicídio, por exemplo) e formalidade acadêmica (com a criação de revistas, disciplinas e laboratórios de pesquisas nas universidades francesas da III República) a estes princípios da Sociologia, legando de Comte a necessidade de afastar a interferência dos juízos na observação e investigação dos “fatos sociais”, sendo fundamental, para tanto, tratá-los como “coisas”. Essa condição de coisa, no entanto, não concerne ao modo de ser dos fatos sociais, ao seu estatuto ontológico – já que, para Durkheim, os fatos ou relações sociais são apenas representações que os grupos compartilham e não coisas materiais, tangíveis -; essa condição de “coisa” remete, isto sim, a uma disposição metodológica, uma espécie de “princípio de ignorância”, uma “dúvida metódica” tal como em Descartes, posta em prática com intuito de afastar o idealismo das deduções lógico-conceituais e as pré-noções acerca daquilo que se quer explicar, o que repõe o axioma positivista da neutralidade junto à necessidade de conhecer os fatos sociais que existem fora do indivíduo como algo exterior, coercitivo e geral. Aliás, é a força de determinação que esses fatos exercem sobre ações individuais que os particularizam como objeto da Sociologia, à medida que se diferenciam radicalmente dos fenômenos psíquicos e físico-biológicos. Como as demais ciências modernas, a Sociologia foi fundada a partir da definição de um objeto e de um método adequado para tratá-lo. Para Durkheim, o objeto dessa ciência que nascia de suas mãos eram os fatos sociais, um fenômeno sui generis que, sendo assim, gênero de si, não se confundiam com os objetos das outras ciências (a biologia, a física, a psicologia, a geografia, a pedagogia...). Sua finalidade, pois, havia se cumprido: Durkheim, esgrimindo firmemente em seu favor, havia vencido a batalha em prol da constituição catedrática da Sociologia. Restava-lhe arcar com o ônus de ter pretensamente alijado para o mundo das ilusões todo o legado da tradição “metafísica”, reunindo num mesmo fardo, junto a Descartes, o sistema categorial de Kant, a fenomenologia histórico-conceitual de Hegel e a dialética materialista de Marx, além dos esforços memoráveis de Smith e Ricardo no que toca à Economia Política. Com arroubos que, por vezes, tomavam o lugar das demonstrações, decidiu-se por aplicar o método positivo das ciências da natureza aos fenômenos cuja natureza ele mesmo havia atribuído a singularidade de existir apenas em sociedade. Ainda assim, conseguiu inverter os termos de Comte: fez da Sociologia um fim e do positivismo um meio. Pretender não uma religião da ciência, mas uma ciência da religião foi a prova primeira disso.

(Texto elaborado para a disciplina de Sociologia do Turismo dos cursos Tecnológico em Hotelaria e Técnico em Hospedagem)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Com açúcar e com afeto...

Cogito ergo sum: o pensamento de René Descartes



Prof. Paulo Massey - IFCE-Baturité



As transformações ocorridas ao longo do século XVI, substanciadas na retomada renascentista do pensamento clássico, abalaram não só as estruturas dogmáticas do pensamento religioso, calcado na autoridade eclesiástica e na provação de fé, mas também criaram um ambiente ofegante de dúvida e desencanto em relação ao mundo e à tarefa de conhecê-lo em sua verdade. A ironia cética (de um Montaigne) surge, então, como desafiadora das intenções mais ou menos pretensiosas, iluminadas por Deus ou pela experiência. Num ambiente de profunda descrença quanto à objetividade do conhecimento humano, restara apenas um caminho à ciência: o método. Nessa empreitada, pois, o empirismo indutivo de Bacon e o racionalismo dedutivo de Descartes encenam as grandes querelas do século XVII e semeiam as linhagens fundadoras da ciência moderna, estendidas até os nossos dias.


Descartes, contudo, não se furtara a esta conjuração contra a razão e contra o dogma: impôs-se também a disciplina da dúvida, do questionamento. Ao seu modo, porém, o fez de forma metódica, levando-a às últimas conseqüências justamente para provar o contrário; parecia-lhe impossível vencê-la evitando-a ou pretendendo reconfortar-se no âmago de certezas frágeis, isentas da provação cética. Partindo da existência de idéias claras e distintas, concebidas igualmente por todos, Descartes pretende ampliar a “cadeia de razões” que permitiria a construção de uma “matemática universal”: a perfeita sabedoria aplicada a quaisquer objetos. Esse princípio de evidência e clareza, porém, circunscreve-se às certezas da subjetividade, e só têm força de evidência as idéias que são claras – uma tautologia, portanto. Era preciso garantir que essas idéias, além de claras, correspondessem a algo real. Para levar a dúvida a uma dimensão extrema, hiperbólica, o filósofo da razão moderna traz à cena o malin génie – o gênio maligno, uma assombrosa ilusão que mantém os homens presos no universo interior da consciência, distantes ou infensos ao mundo exterior, tal como os alumnu de Platão que vivem na escuridão da caverna ou os idola de Bacon. Porém, um certo desejo de fugir à dúvida renitente leva, contrariamente, à dúvida metódica, ou seja, se duvido penso, e ao duvidar do que penso consigo extrair daí um núcleo de certeza que se acumula e se expande, até sua radicalidade. Assim como na ordem natural de uma progressão matemática, também para o conhecimento das coisas mundanas procedemos de acordo com o que já temos: o conhecimento existente, em relação ao qual o desconhecido constitui apenas um dado relativo, cuja ordem, natureza ou função é possível desvelar numa cadeia de termos relacionais. Para isso, porém, é preciso ir além do preceito de evidência, pois, nem tudo aparece imediatamente intuível. Outros procedimentos precisam ser acionados: a análise, a síntese e a enumeração. Contudo, será vã a tarefa de desenvolver tais instrumentos procedimentais se não estiver resolvida a questão epistemológica fundante desta atividade: a possibilidade de conhecer algo exterior e objetivo (a natureza). Até então, a dúvida levara apenas à existência solipsista do ser pensante – “penso, logo existo”. Ir além, chegar à objetividade do mundo existente fora da consciência – o mundo físico, onde se situa seu próprio corpo – requer o interregno de uma força maior, a garantia última de qualquer existência: Deus. Tratava-se, porém, não de demonstrar a existência de Deus (res infinita), mas de demonstrar que, por que Deus existe, existe a idéia de Deus (res cogitans). Surge então, no sistema de deduções lógicas de Descartes, o bon Dieu que torna impossível o malin génie, ou seja, a sabedoria de Deus, que não permite o erro, o engano, a injustiça. O Deus cartesiano é, assim, a garantia da objetividade do conhecimento científico.


(Texto utilizado em sala de aula, no 1° semestre do curso de Gastronomia do IFCE - Campus Avançado de Baturité. Disciplina: Metodologia do Trabalho Científico)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

STF: HORROR E CINISMO

David Moreno Montenegro

Certa vez ensinou o jurista George Jellinek (1851 – 1911) que as normas jurídicas não poderiam escapar às “forças normativas da dimensão fática”, alertando que as leis delineadoras das ações não poderiam negligenciar o poder dos fatos sociais. A sensibilidade de captar os sentimentos e anseios contidos nos clamores populares, nas manifestações sociais, nas vísceras vicejantes do fazer cotidiano de uma sociedade parece ser capacidade em falta em nossos ministros do STF, tribunal muito bem caracterizado por importante filósofo uspiano de casa dos horrores. Nos últimos dias, a assustadora casa deu mais uma prova de seu temido repertório de perversidades ao rejeitar projeto de lei endossado por mais de um milhão de cidadãos brasileiros que lá gravou sua assinatura, afora aqueles que mesmo distantes das pilhas de papéis que movem o Estado burocrático brasileiro, deixaram sua marca na história por palavras de ordem.

Tão assustador quanto foi assistir com que indiferença a maior parte dos doutos ministros alertavam para os “perigos” em se considerar a paixão vinda das ruas como elemento determinante na decisão técnico-jurídica que deveriam tomar, afirmando que o papel que desempenhavam era o da defesa dos valores consagrados na carta magna de 1988. O argumento vencedor destacava o clima de insegurança jurídica que poderia ser gerado ao se mudar as regras do jogo com o mesmo em andamento. Pelo que me consta, os pretendentes a cargo parlamentar atingidos pela nova legislação seriam aqueles já condenados em alguma instância judicial, devendo os mesmos ser impedidos de disputar cargos públicos até que a querela jurídica fosse solucionada. Ora, não se trata de ataque à presunção de inocência, mas, antes, uma medida protetora da sociedade daqueles que aspiram ao poder político e são marcados por evidentes desvios éticos, poder tão próximo neste país dos mais temidos arroubos autoritários.

Considerar os valores contidos na constituição de 1988 como imutáveis, congelados no tempo revela mais um impressionante, e por que não dizer cínico, recurso retórico que nega o caráter mutável, histórico e contingente dos valores de cada época, valendo-se de tal engodo discursivo para legitimar verdadeiros atentados à vontade e iniciativa populares, trazendo à tona o caráter nebuloso e insólito das decisões do referido tribunal que, nos últimos anos, além de ter dado provas da simpatia por banqueiros criminosos, acaba de incluir mais uma categoria no panteão às avessas de seu show de bizarrices: políticos corruptos.

Do que se trata, portanto, é nos perguntar sobre as bases efetivamente democráticas de tais decisões e a capacidade destas de refletir a realidade escancarada das mudanças há muito gestadas e reivindicadas por um país ainda neófito nas práticas democráticas, uma vez que são tomadas por sujeitos que se julgam acima da roda viva da história, como que se pronunciassem dum limbo marcado pela vacuidade, impossível de ser influenciado pelas verdades do mundo profano. Eis mais uma cena do espetáculo maldito do circo dos horrores.



David Moreno é Cientista Social (UECE); Mestre em Sociologia (UFC); Professor de Sociologia do IFCE. Artigo publicado no Jornal O Povo (clique aqui para ver)